Busca por vacina e medicamentos contra covid-19 sacode bilionário mercado editorial científico, com plataformas liberando acesso a artigos e publicando material ainda não revisado para agilizar compartilhamento de dados.
A atual pandemia de coronavírus, que infectou mais de 340 mil pessoas e matou mais de 14,7 mil até esta segunda-feira (23/03), pode revolucionar a maneira como se divulga ciência. Grandes editoras se comprometeram a liberar o acesso a artigos sobre a covid-19, a doença respiratória causada pelo novo vírus, em suas plataformas. O objetivo é compartilhar conhecimento o mais rápido possível e, assim, contribuir com a busca por uma vacina ou algum tipo de medicamento que possa amenizar os efeitos do coronavírus.
O acordo, organizado pela fundação Wellcome Trust, foi assinado em 31 de janeiro por 117 editoras de publicações científicas. As signatárias disponibilizam os textos de duas formas: repositórios dos chamados preprints (pré-impressão) – artigos que ainda não foram revisados por outros pesquisadores; e artigos que já submetidos à avaliação, publicados em periódicos científicos.
Movimentos parecidos foram feitos com a Sars, em 2002 e 2003, e com o vírus zika, em 2015, mas a proporção da atual pandemia e o número elevado de estudos que estão sendo publicados diariamente em diversas plataformas é algo inédito e sem precedentes no mundo da ciência, afirma o diretor da plataforma Scielo, Abel Packer.
“A Sars teve uma solução muito mais rápida e provocou menos mortes [mais de 800], então o que ocorre agora com o coronavírus é inédito. O consenso no mundo científico é que o conhecimento precisa ser aberto o mais rápido possível, pois, assim, uma pesquisa ajuda a outra”, explica Packer.
Um artigo científico demora, em média, um ano para ser publicado, devido ao longo processo de revisão. Isso significa que ainda estaríamos a meses de conhecer o primeiro estudo sobre o coronavírus causador da covid-19, batizado de Sars-Cov-2. A divulgação de preprints agiliza o compartilhamento de dados entre cientistas.
A plataforma MedArchive, por exemplo, registrou 680 artigos sobre o coronavírus desde 19 de janeiro. São textos de diversos países, que analisam casos locais e buscam entender padrões da pandemia.
Gigantes do setor editorial científico, como a Springer Nature, criaram espaços específicos para estudos sobre a covid-19. Tudo aberto para quem quiser acessar e ler os estudos. Algo pouco comum para uma editora que chega a cobrar 200 dólares por uma assinatura anual de uma revista do seu catálogo. Em nota, a editora explicou que vê fatores positivos na publicação de preprints.
“As plataformas de preprints, onde os autores podem publicar seus manuscritos submetidos antes da revisão formal por pares, têm a capacidade de transformar significativamente o compartilhamento e o acesso antecipados à pesquisa primária. Também incentivamos os autores a compartilhar seus conjuntos de dados da maneira mais ampla e rápida possível para ajudar a apoiar a transparência da pesquisa e o engajamento com o avanço da descoberta”, informa a nota da Springer Nature.
Packer, da Scielo, também destaca a importância de dados que normalmente ficam em anexos não públicos. “Esses dados coletados em pesquisas que acabam não entrando diretamente nos artigos podem ser importantíssimos em outros estudos, mas muitas vezes se perdem porque ficam em anexos não disponíveis. A ciência precisa ser aberta também nesse caso”, diz.
A DW Brasil entrou em contato com a editora inglesa The Lancet, signatária do acordo da Wellcome Trust e que também criou um espaço aberto para artigos relacionados à covid-19. Até sábado, a plataforma contava com 148 estudos. Em nota, a editora informou que não conseguiria responder às perguntas encaminhadas pela reportagem porque todos os editores estavam empenhados em revisar “o grande volume de artigos sobre covid-19” recebidos.
Apesar de toda essa movimentação da comunicade científica, os cientistas Vincent Larivière (Canadá), Fei Shu (China) e Cassidy Sugimoto (Estados Unidos) afirmam, num artigo publicado em 5 de março sobre compartilhamento de estudos sobre a covid-19, que os esforços deveriam ser ainda mais amplos. Eles apontam que existem estudos sobre coronavírus desde a década de 1960 que podem ajudar também na busca atual por soluções, mas que 51% desses textos estão em plataformas fechadas para assinantes.
“Apelamos à comunidade científica – publishers, financiadores e sociedades – para que se mantenham fiéis à sua palavra. A declaração do Wellcome Trust é inequívoca: o compartilhamento rápido da pesquisa é necessário para informar o público e salvar vidas. Enquanto aplaudimos o trabalho que está sendo realizado em meio a esta crise, esperamos que este momento sirva como catalisador de mudanças”, expõe o artigo.
De cientistas para cientistas
O acesso livre a estudos científicos também tem um lado negativo: a falta de conhecimento do público leigo sobre como as informações devem ser assimiladas. Na última quinta-feira, o presidente dos estados Unidos, Donald Trump, afirmou numa coletiva de imprensa que testes indicaram que cloroquina, e um derivado seu, a hidroxicloroquina, seriam eficientes no tratamento contra covid-19. O presidente afirmou que o medicamento deveria estar disponível para tratar a doença “quase imediatamente”.
A procura pelo medicamento, usados por pacientes com malária, lúpus e artrite reumatoide, foi imediata. Nos dias seguintes, várias farmácias dos EUA já não tinham o remédio, prejudicando diretamente os pacientes que já fazem uso dele. A procura também aumentou em outros países, inclusive no Brasil.
Neste sábado, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) enquadrou como medicamentos de controle especial as substâncias hidroxicloroquina e cloroquina, para evitar que pessoas que não precisam efetivamente deles provoquem o desabastecimento do mercado. A imprensa brasileira relatou falta do remédio nas farmácias.
No mesmo dia, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro apostar em pesquisas preliminares com a hidroxicloroquina. Ele divulgou um vídeo em suas redes sociais afirmando que o laboratório do Exército irá ampliar a produção do medicamento e disse ainda que “tem fé que brevemente o Brasil ficará livre do vírus”.
Neste domingo, o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, alertou a população contra o uso da hidroxicloroquina, afirmando que a medicação tem “efeitos colaterais intensos” e que seu uso deve ser acompanhado por um médico. Mandetta explicou que os testes realizados com o medicamento foram feitos em poucos pacientes, então não é possível garantir a sua eficiência contra o vírus.
Casos como o da cloroquina ou hidroxicloroquina podem se repetir nos próximos dias por causa do clima de medo nos países que estão enfrentando a covid-19, e também pela falta de prática da população em ler artigos científicos, afirma Sabine Righetti, coordenadora da Agência Bori, criada em fevereiro para ser uma ponte entre pesquisadores e jornalistas.
“O conteúdo de artigos científicos é feito por cientistas e para cientistas. Um pesquisador não lê achando que aquilo é um fim, mas um passo a mais no estudo de determinado tema. Por isso o risco de um texto ser mal compreendido é alto, como aconteceu com a fala do Trump”, diz Righetti.
A Agência Bori foi fundada justamente com o objetivo de diminuir o distanciamento entre o conteúdo de pesquisas científicas e a população. A plataforma serve como intermediário entre jornalistas e cientistas, buscando esclarecer temas complexos. Sobre coronavírus, há um banco de informações com contato de 35 cientistas aptos a falar sobre aspectos da atual pandemia. Em pouco mais de um mês de funcionamento, a agência já soma mais de 600 jornalistas cadastrados .
Mercado bilionário
O mercado editorial científico movimenta bilhões de dólares por ano com cobrança de assinaturas e taxas para publicação. Editoras mais conhecidas chegam a cobrar mais de 5 mil dólares para aceitar a inscrição de um estudo – sem qualquer garantia de publicação, pois tudo depende do resultado da análise do conteúdo.
A grande diferença entre os chamados preprints e artigos publicados em revistas tradicionais é que neste último caso há o que o mundo científico chama de revisão por pares. Ou seja, um cientista da mesma área revisa o conteúdo do artigo e isso gera uma demora natural na publicação, e também um custo maior por causa do pagamento dos revisores.
Para aumentar o volume de pesquisas abertas, agências de fomento da Europa criaram em 2018 a cOAlisão S (cOAlition S, em inglês, sendo o OA de Open Access e o S de Science). A iniciativa obriga todos os cientistas com pesquisas financiadas pelas fundações signatárias a publicar seus resultados em revistas de acesso aberto. No entanto, muitas editoras que assinam a atual declaração da Wellcome Trust criticaram a cOAlisão S, apontam os cientistas Larivière, Shu e Sugimoto em seu artigo recente.
Desde julho de 2019, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) segue o mesmo caminho e determina que pesquisas financiadas pela fundação sejam disponibilizadas em “um repositório público, ficando disponível para consulta via web por qualquer pessoa e sem custo”.
Packer afirma que a Scielo, responsável por publicar 22 mil artigos científicos em português por ano, prepara um publicador de artigos preprint que deve ser lançado nos próximos meses. Ele afirma que ainda há uma resistência de grandes editoras, mas diz acreditar que o atual movimento criado para abrir estudos científicos por causa da pandemia de covid-19 deve ser um divisor de águas nessa disputa.
“É extremamente custoso publicar e ler ciência, porque há um mercado bilionário que envolve essas taxas e assinaturas. A maior preocupação dessas grande editoras é como vão sobreviver se tudo for aberto. Essa briga começou há mais de 20 anos, mas o momento atual de divulgação de pesquisas sobre covid-19 deve mostrar definitivamente que precisamos compartilhar conhecimento o mais rápido possível para atender à sociedade”, diz Packer.
Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/pandemia-de-coronav%C3%ADrus-pode-revolucionar-divulga%C3%A7%C3%A3o-cient%C3%ADfica/a-52885115. Acesso em: 11 abr. 2020.